“Sem Censo, damos adeus à pretensão de entrar na OCDE”, diz geógrafo
O advogado e geógrafo Luiz Ugeda, presidente da Comissão Especial de Geodireito da OAB/SP, escreveu um artigo exclusivo para O Antagonista sobre a história do Censo e sua importância para o país. Como já registramos, o Orçamento de 2021 tirou verbas essenciais do IBGE, inviabilizando o recenseamento demográfico...
O advogado e geógrafo Luiz Ugeda, presidente da Comissão Especial de Geodireito da OAB/SP, escreveu um artigo exclusivo para O Antagonista sobre a história do Censo e sua importância para o país.
Como já registramos, o Orçamento de 2021 tirou verbas essenciais do IBGE, inviabilizando o recenseamento demográfico. Na quarta-feira 28, porém, Marco Aurélio Mello concedeu liminar obrigando o governo federal a realizar o Censo.
Ugeda, diretor-executivo do portal Geocracia, lembra que, “se os dados são o petróleo do século 21, ficarmos sem uma política pública geográfica, estatística e sem Censo seria o mesmo que fechar a nossa Petrobras dos dados”. “Censo é tão essencial e invisível quanto a energia elétrica.”
E mais: sem o recenseamento, “damos adeus às pretensões de entrar na OCDE”. “O historiador do futuro não terá dados oficiais para analisar o que foi a pandemia da covid-19 no Brasil. Nossos dados, a partir de agora, só estarão disponíveis no Twitter.”
Ele também defende a transformação do IBGE em uma “agência reguladora para a infraestrutura de dados oficiais do país, com orçamento próprio e mandato fixo da diretoria”.
Leia a íntegra:
“Há muitos clichês para se falar sobre o Censo. Poderíamos dizer que falta bom ‘senso’ para fazer o Censo, que ele foi ‘censurado’, que o país não teve ‘sensibilidade…’ A origem da palavra Censo se confunde com a história do Ocidente. Aquele instrumento existente desde 6.000 a.C. na Babilônia, imortalizado pelos romanos com o census, pelos escandinavos com a universalização na coleta de dados de 1703 e disseminado mundo afora pelo Congresso Internacional de Estatística, realizado na Bélgica em 1853.
Desde a Antiguidade, estados não honram seus compromissos financeiros sem identificar a população apta a subsidiar sua estrutura e ser tributada. Com o passar do tempo, também para que o Estado atribua cidadania. O primeiro Censo brasileiro foi em 1872, realizado pelo pai do Barão, o primeiro-ministro Visconde do Rio Branco. Dez milhões de brasileiros contabilizados, sem contar a população escrava que não estudava, chaga que carregamos até os dias atuais. São Paulo, praticamente uma província jesuíta, sequer estava entre as 20 maiores cidades do país, era um pouco menor que Campinas.
Sistematizamos a contagem de nossa população no Censo de 1940, idealizado pelos geniais Mário Augusto Teixeira de Freitas e o embaixador Macedo Soares, que criaram o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para aquela finalidade. Em plena 2ª Guerra Mundial, contamos quantos éramos, e quanto tínhamos mudado em relação a 1872. Éramos 40 milhões, outro país. E, desde então, descontado o atraso em 1991, fazíamos Censo a cada dez anos.
Em 13 de fevereiro de 1967, o IBGE morreu pela primeira vez. O Decreto-Lei n. 161, nos últimos dias do governo Castelo Branco, deu um drible da vaca na sociedade brasileira, criando a Fundação IBGE. No art. 1º criou a Fundação IBGE e, no art. 32, previu que o IBGE, o original, deveria ser extinto. Resumidamente, o decreto fortaleceu o lado estatístico, pois o Regime Militar precisava de uma narrativa de país e entendia que a estatística oficial era a base deste sistema. Chamaram artistas e os ícones da seleção brasileira de futebol para divulgar o Censo de 1970 com novas técnicas.
Por outro lado, o ‘G’ do IBGE, a geografia oficial, as regionalizações, o ordenamento do território, foram absolutamente descartados como política pública. Atualmente temos mais municípios do que geógrafos habilitados com CREA em uma realidade na qual latitude e longitude têm uma clara sinalização econômica. Hoje, enquanto emerge uma indústria mundial bilionária de mapas, carros autônomos e cidades inteligentes, o Brasil não se preparou adequadamente para programar nosso território. Sequer estamos cartografados em 1:100.000, escala mínima para planejamento do país. Se quisermos acessar esses dados, temos que buscá-los no Vale do Silício, em Pequim, em Moscou ou na Europa.
Agora, em 23 de abril de 2021, com o anúncio de que o Censo 2020 seria cancelado pelo governo Federal, o IBGE se encaminhava para sua segunda morte, a do ‘E’ do IBGE. Salvou-o desse fim melancólico a decisão monocrática do ministro Marco Aurélio, do STF, que determinou a realização do Censo sob o argumento de que, ao deixarem de realizar o estudo no corrente ano em razão de corte de verbas, União e o IBGE ‘descumpriram o dever específico de organizar e manter os serviços oficiais de estatística e geografia de alcance nacional’.
De fato, se os dados são o petróleo do século 21, ficarmos sem uma política pública geográfica, estatística e sem Censo seria o mesmo que fechar a nossa Petrobras dos dados. Censo é tão essencial e invisível quanto a energia elétrica. Só nos lembramos dela quando falta, é um apagão de dados. Todas as nossas políticas públicas ficarão comprometidas daqui para frente pois, sem dados oficiais, fake news vira verdade.
De qualquer maneira, o IBGE precisa ficar a salvo de situações como essas e, ao mesmo tempo, acompanhar a evolução tecnológica mundial da geoinformação. A solução? A experiência internacional ensina que o caminho é transformar a Fundação IBGE em uma agência reguladora para a infraestrutura de dados oficiais do país, com orçamento próprio e mandato fixo da diretoria. O ex-presidente da Fundação IBGE, Paulo Rabello de Castro, foi muito feliz ao afirmar a O Antagonista que ‘não existe democracia representativa sem enumeração, sem contagem populacional’. Sem Censo decenal, damos adeus às pretensões de entrar na OCDE. O historiador do futuro não terá dados oficiais para analisar o que foi a pandemia da covid-19 no Brasil. Nossos dados, a partir de agora, só estarão disponíveis no Twitter.”
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