A praga do caudilhismo
No final dos anos 1980, em viagem pelas cidades barrocas de Minas Gerais, cheguei à Igreja de São Francisco de Assis, em São João Del-Rei, cujo projeto original é de Aleijadinho. Depois de contemplar o interior e o traçado do templo, já na saída, um guardião me interpelou. Eu tinha esquecido de visitar o túmulo de Tancredo Neves. Por delicadeza, me deixei levar ao “locus sacratus”. E ouvi do meu guia acidental que, morto, Tancredo fazia milagres...
No final dos anos 1980, em viagem pelas cidades barrocas de Minas Gerais, cheguei à Igreja de São Francisco de Assis, em São João Del-Rei, cujo projeto original é de Aleijadinho. Depois de contemplar o interior e o traçado do templo, já na saída, um guardião me interpelou. Eu tinha esquecido de visitar o túmulo de Tancredo Neves. Por delicadeza, me deixei levar ao “locus sacratus”. E ouvi do meu guia acidental que, morto, Tancredo fazia milagres. A morte dele tinha criado, de fato, uma comoção nacional, com a manifestação de grande devoção a uma pessoa que já pertencia ao plano hagiográfico.
O caso de Tancredo não é isolado, antes reflete um padrão que conduz as escolhas políticas no Brasil. Entre nós, atua a lógica do caudilho. O caudilho é um líder que se confunde, entre os seus, com a figura acima do bem e do mal, que cria um exército de seguidores que dão a sustentação a um desejo de refundar o país. Na história curta da República, quando a democracia pôde ser exercida, houve recorrentes líderes com tais traços.
Só isso explica que Getúlio Vargas, depois de ter mudado o curso sucessório com um exército paralelo sob seu comando, em 1930, exercendo o poder ditatorial até 1945, retorne pelo voto livre em 1951. Ele já não pertencia à própria biografia, pois havia sido santificado. Tanto que seu suicídio faz parte da consolidação do mártir. É da natureza do caudilho criar esta crença no seu poder messiânico. Com mais ou com menos elementos caudilhescos, muitos presidentes do Brasil podem ser aproximados a esta categoria. Jânio Quadros, um pernóstico professor de português, se encaixa nela, tendo chegado à presidência com um apelo populista de saneador político, não conseguindo, no entanto, se sustentar. Outro exemplo bem–acabado deste perfil precário foi Fernando Collor de Mello, “o caçador de marajás”, um então jovem bem-apessoado que se elegeu como uma espécie de He-Man nacional, fazendo-se confundir com um super-herói que tiraria o paísda mão dos predadores. Collor se aproximou de Frei Damião, um frade italiano (hoje em processo de beatificação) radicado no Nordeste, tentando colar sua imagem à dele. Não foi muito diferente o caminho do presidente Luís Inácio Lula da Silva, que também construiu uma imagem de pai dos pobres, focando as classes sociais mais sofridas do país, que sempre tiveram restrições de direito, e constituindo uma militância com conexões internacionais.
Mas foi o presidente Jair Bolsonaro que mais se valeu desta estrutura caudilhesca para criar um legião de seguidores, agora unida virtualmente e promovendo compartilhamentos viralizantes de materiais de toda natureza na internet,principalmente no whatsApp, que é um rede secreta, propondo-o como o “o salvador da pátria”, título aliás de uma novela da Rede Globo de 1989 sobre a figura do líder escolhido diretamente pelo povo – não por acaso, em 1990, Collor seria eleito. Outras personalidades guardam uma construção similar, sem terem chegado à presidência. Um Luiz Carlos Prestes, eleito por Jorge Amado como “o cavaleiro da esperança”, pelas ações da coluna paramilitar que ele comandava. Ou mesmo um Antônio Carlos Magalhães, tratado na Bahia como milagreiro, o que levava as pessoas humildes a quererem tocar em “seo Antônio”.
Faz parte da dinâmica eleitoral brasileira a busca do assinalado, que vai nos tirar de um estado de sofrimento. Uma das matrizes desta crença está traduzida na figura de Antônio Conselheiro, que se opõe à República e cria um país alternativo em Canudos, atraindo milhares de discípulos a um regime religioso de gestão.Canudos viria de uma tradição judaica da terra prometida aos excluídos e estava baseada em uma proposta de volta “à idade de ouro dos apóstolos”, “revivendo vetustas ilusões”, nas palavras de Euclides da Cunha. Esta força mística também vai criar um exército santo em torno dos monges na Guerra do Contestado, no sul do Brasil.
A pergunta a se fazer é: de onde vem este modelo? Tudo indica que nosso imaginário, enquanto nação, reflete o sebastianismo, muito difundido ao longo dos séculos nos meios populares brasileiros. O desaparecimento do rei Dom Sebastião, na batalha de Alcácer-Quibir, em 1578, criou o mito de que ele voltaria com um exército mágico para tirar Portugal da crise e conduzir a pátria a um novo momento de grandeza: “louco, sim, louco, porque quis grandeza”, segundo um verso de Fernando Pessoa. Estaremos sempre esperando um políticoque fará este papel?
A democracia, para ser forte e duradoura, deve ser a construção de um projeto coletivo de país que garanta a igualdade de acesso às oportunidades, acima dos populismos demagógicos e das promessas de milagreseconômicos e sociais que acabam sempre em farsa ou tragédia.
Miguel Sanches Neto é escritor, autor, entre outros do romance A Bíblia do Che (Companhia das Letras, 2016).
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