Abaixo a censura
Vivi para ver jornalista pedindo censura. Profissionais da redação da Folha de S.Paulo assinaram uma carta aberta na qual demonstram "preocupação" com a publicação, no último fim de semana, de um artigo assinado por Antonio Risério (foto) intitulado "Racismo de negros contra brancos ganha força com identitarismo". A carta, assinada por 191 jornalistas, mais 17 anônimos (sim, você leu certo), é endereçada à direção...
Vivi para ver jornalista pedindo censura. Profissionais da redação da Folha de S.Paulo assinaram uma carta aberta na qual demonstram “preocupação” com a publicação, no último fim de semana, de um artigo assinado por Antonio Risério (foto) intitulado “Racismo de negros contra brancos ganha força com identitarismo”.
A carta, assinada por 191 jornalistas, mais 17 anônimos (sim, você leu certo), é endereçada à direção do jornal, mais especificamente aos integrantes da Secretaria de Redação e do Conselho Editorial da Folha.
“Nós, jornalistas da Folha aqui subscritos, vimos por meio desta carta expressar nossa preocupação com a publicação recorrente de conteúdos racistas nas páginas do jornal. Sabemos ser incomum que jornalistas se manifestem sobre decisões editoriais da chefia, mas, se o fazemos neste momento, é por entender que o tema tenha repercussões importantes para funcionários e leitores do jornal e no intuito de contribuir para uma Folha mais plural”, diz um trecho da carta.
E mais:
“Em mais de uma ocasião recente, a Folha publicou artigos de opinião ou colunas que, amparados em falácias e distorções, negam ou relativizam o caráter estrutural do racismo na sociedade brasileira. Esses textos incendeiam de imediato as redes sociais, entrando para a lista de mais lidos no site. A seguir, réplicas e tréplicas surgem, multiplicando a audiência. A controvérsia então se estanca e morre, até que um novo episódio semelhante surja.”
Os signatários da carta criticam também textos publicados por Leandro Narloch e Demétrio Magnoli.
“Acreditamos que esse padrão seja nocivo. O racismo é um fato concreto da realidade brasileira, e a Folha contribui para a sua manutenção ao dar espaço e credibilidade a discursos que minimizam sua importância. Dessa forma, vai na contramão de esforços importantes para enfrentar o racismo institucional dentro do próprio jornal, como o programa de treinamento exclusivo para negros. Reconhecemos o pluralismo que está na base dos princípios editoriais da Folha e a defesa que nela se faz da liberdade de expressão. No entanto estes não se dissociam de outros valores que o jornalismo deve defender, como a verdade e o respeito à dignidade humana. A Folha não costuma publicar conteúdos que relativizam o Holocausto, nem dá voz a apologistas da ditadura, terraplanistas e representantes do movimento antivacina.”
Os jornalistas dizem, ainda, que textos como o de Antonio Risério “atraem audiência no curto prazo”, mas defendem que “sua consequência seguinte é minar a credibilidade”.
É uma carta desonesta e vergonhosa. Os jornalistas acusam de racismo articulistas que apenas ousaram discordar do discurso vitimista e intimidador que tomou conta do debate no Brasil, por meio da importação automática de pautas identitárias. Nenhum articulista citado defendeu o racismo. Nenhum articulista citado é de uma Ku Klux Klan. No artigo que suscitou o pedido de censura da parte dos jornalistas da Folha (o eufemismo “preocupação” é, sim, um pedido de censura, e em defesa da pluralidade, o que torna tudo ainda mais ignominioso), o antropólogo Antonio Risério exemplifica o que seriam exemplos de racismo de pretos contra brancos, tema que virou anátema sob o rótulo de “racismo reverso”, utilizado na carta pelos jornalistas censores (não pelo antropólogo), que simplesmente decretaram que negros não podem ser racistas. Antonio Risério já havia suscitado escândalo entre os patrulheiros, ao publicar o livro As Sinhás Pretas da Bahia. Foi acusado de minimizar a brutalidade do racismo e da escravidão no Brasil, por meio da recuperação da história real de mulheres pretas e mestiças que, uma vez livres, fizeram fortuna, obtiveram a sua alforria e compraram escravos. Na verdade, ele não minimizou nada, apenas se recusou a cancelar a história, com a borracha do “racismo estrutural”, esse dogma saído das catedrais universitárias americanas.
Em entrevista à Crusoé, em outubro do ano passado (aberta para não assinantes), Antonio Risério foi bastante didático sobre a sua crítica ao identitarismo:
“A ideologia hoje dominante congela a história da Humanidade em seus inícios, definindo grandes arquétipos ou caricaturas. Assim, quem nasce homem no século XXI está na obrigação de carregar o fardo das antigas sociedades patriarcais. Mas essas sociedades há muito tempo não existem nos países democráticos do Ocidente. O patriarcalismo, hoje, vigora em países muçulmanos, em sociedades da África Negra, em extensões asiáticas. Enquanto isso, no nosso mundo ocidental, Nicole Kidman e Fernanda Torres levam a vida que bem entendem e ninguém tem nada a ver com isso. A criação desses arquétipos é o que se chama de identitarismo, o qual condena recém-nascidos ao confinamento num passado às vezes pré-histórico. O revolucionário negro Frantz Fanon dizia que não iria desperdiçar sua vida tentando vingar os negros do século XVIII. Claro. Mas é essa a postura identitária. O homem negro, portanto, é prisioneiro de sua anatomia. Com o homem branco é a mesma coisa. Um garotinho branco recém-nascido hoje, num bairro de classe média de Recife, por exemplo, é acusado de crimes cometidos por senhores escravistas do sul do Estados Unidos, ao longo do século XVIII. É uma coisa absolutamente caricatural. E paralisadora. Além disso, o branco é sempre a encarnação do privilégio e da opressão, mesmo que seja motorista de táxi ou pedreiro e que não tenha dinheiro para comprar a cesta básica.”
Na mesma entrevista, o antropólogo afirmou que a universidade e a imprensa estariam abrindo caminho para a “sonhada desconstrução nacional sonhada pela esquerda identitária”:
“O que está sendo escanteado pela universidade e pela mídia é a necessidade de repensar em profundidade a experiência nacional brasileira. Precisamos fazer isso por nossa própria conta e risco. Até porque temos pela frente a passagem dos 200 anos da nação, com a comemoração do bicentenário da Independência de 1822. O que está sendo organizado para essa data é o apogeu da desconstrução nacional pregada pelo identitarismo multicultural, agora com total apoio da elite midiática. É o apogeu da paixão mórbida pela comemoração negativa, como diz o sociólogo canadense Mathieu Bock-Côté. Penso que temos de rever de forma radicalmente crítica nossa experiência nacional, mas em um horizonte aberto e profundo. Não podemos fazer isso na base do maniqueísmo rasteiro, na base da luta do bem contra o mal. Dou um exemplo. Antes do movimento abolicionista das últimas décadas do século XIX, ninguém no Brasil era contra o escravismo enquanto sistema. Cada grupo queria somente livrar sua cara, não ser escravizado. Mas ninguém se importava com a escravidão dos demais. Basta lembrar que havia escravos em Palmares e que o projeto da revolta dos negros malês, em 1835, incluía a escravização dos mulatos. Trazendo esse episódio que ocorreu em Salvador para os dias de hoje, é como se os pretos muçulmanos da Bahia quisessem escravizar aqueles que hoje são a vastíssima militância dos movimentos negros. Naquele tempo, não havia uma recusa do sistema escravista em si. Isso só aconteceu com a emergência do movimento abolicionista. Então, nós devemos rever a nossa experiência nacional assim, sem qualquer unilateralismo penitencial. Pelo que estou vendo, a comemoração dos 200 anos do Brasil independente será o avesso do que aconteceu em nosso primeiro centenário. Em 1922, apesar das diferenças políticas e ideológicas, todos se concentraram na necessidade de uma afirmação moderna do Brasil como nação. Em 2022, o papo vai ser outro. O que se tem em vista não é nenhuma afirmação, mas a negação da nação. A desconstrução nacional sonhada pela esquerda identitária.”
Antonio Risério não é um bolsonarista. Acha Jair Bolsonaro tão cínico quanto Lula, equidistância que também ajuda a explicar a carta dos jornalistas censores. O antropólogo é um estudioso que reconhece na atividade intelectual a sua função provocadora. Se o bolsonarismo apropriou-se indevidamente de pautas que merecem ser questionadas, como as sanhas do politicamente correto e da visão identitária do mundo, isso não pode servir de pretexto para que se cancele a liberdade de expressão e a livre circulação de ideias. A comparação que os profissionais da Folha fizeram com o Holocausto é de enrubescer, tamanha a indecência.
Depois que a carta dos jornalistas censores veio à tona, o antropólogo fez o seguinte comentário no Facebook:
“Ainda meio sem saco, mas não posso deixar de fazer o rabisco seguinte (e os outros que necessariamente virão…)…
Joel Pinheiro me cobrou exemplos de racismo preto contra branco no Brasil. Ok. Vamos lá. Eu poderia ter empilhado exemplos no meu artigo – cujo título original, aliás, é UM NEORRACISMO TRAVESTIDO DE ANTIRRACISMO. Não empilhei. Porque pretendia escrever um artigo só sobre isso – e porque o artigo em questão tinha atingido o enquadramento-padrão de 9 mil caracteres com espaços. Artigos, afinal, não são teses, nem livros.
Darei exemplos na próxima ‘nota de esclarecimento’. Antes, é preciso desmontar a espertíssima jogada do ‘racismo estrutural’, cujo desfecho, no campo do Direito, seria, logicamente, a criação de um código penal para cada ‘raça’. Claro. A ‘tese’ dessa malandragem jurídico-ideológica é a seguinte. O racismo não acontece em plano individual – vem de um sistema de poder, de uma estrutura social. Como preto é oprimido e não conta com a estrutura a seu favor, está simplesmente impossibilitado de ser racista (é dessa esperteza que vem a conversa de que ‘racismo reverso’ – sobre o qual, aliás, não escrevi uma sílaba – não existe).
Aqui no FB, Álvaro Mendes tocou no ponto certo: ‘A expressão ‘racismo estrutural’, pelo menos aqui no Brasil, tem propósito e método. Se o racismo é, de fato, ‘estrutural’, ele só pode ser combatido destruindo-se a ‘estrutura’. Essa é a lógica. E qual é a ‘estrutura’? A sociedade capitalista heteronormativa neocolonial eurocentrada’. Ou seja: preto pode ser racista à vontade, porque só depois que for derrubada a estrutura capitalista é que poderá ser responsabilizado pelos crimes que cometer... É por isso mesmo que Álvaro diz que o racismo em si nunca foi a preocupação maior de movimentos identitários que abraçaram a causa do ‘racismo estrutural’. O objetivo é outro.
Para defender essa tolice, nossos militantes são acadêmicos, obviamente. Querem dar um ar de cientificidade à jogada. Mas a verdade é que ninguém precisa contar com um aparelho estatal para ser racista. Uma gangue que impõe seu poder numa favela é ilusão de ótica só porque não traz com ela o aparelho de Estado, a ‘estrutura’ etc.? Aliás, todas essas definiçõezinhas de manuais acadêmicos pouco se sustentam na realidade. Acho hilário quando leio num desses livros que o Estado detém o monopólio da coerção organizada, por exemplo. Porque o narcotráfico arquivou essa ‘definição’ há muito, muito tempo.
Mas, então, voltemos: como o racismo é ‘estrutural’ e preto é ‘oprimido’, logo, mesmo que queira, preto não pode ser racista. Trata-se de uma coisa impossível… É ridículo. E o próprio Joel Pinheiro ridicularizou isso: ‘O racismo englobaria o nosso sistema social como um todo, constituído de uma história escravocrata e erigido numa estrutura hierárquica que coloca um grupo racial acima de outro e tem meios para perpetuar essa sujeição. Apenas atos em que essa ordem se reafirma seriam propriamente racistas. […] Imagine que alguns estudiosos da violência propusessem restringir o termo ‘assassinato’ apenas aos casos em que o que matador fosse hierarquicamente superior à vítima. Se um patrão matasse seu empregado, aí sim teríamos um assassinato. Mas se um vizinho matasse o outro, aí não, teríamos outra coisa, uma ‘morte violenta premeditada’. Páginas e páginas de discussão acadêmica seriam gastas para discutir quais casos seriam ou não seriam ‘assassinato’. Mas a realidade dos crimes continuaria a mesma’.
Me lembro do título do romance meeiro ‘Um Defeito de Cor’ (sobre o qual, logo que foi publicado, fui dos primeiros a escrever, com elogios e críticas – estas, relativas, inclusive, à ignorância da autora sobre a cultura nagô-iorubá, em aspectos do livro). Agora, o “racismo estrutural” quer implantar ‘Um CRIME de Cor’. Vale dizer: se o mesmíssimo crime for cometido por um branco e um preto, o branco terá cometido o crime – o preto, não…
E aí? Teremos dois códigos penais? Um código penal dois-pesos-duas-medidas – ou o quê? Ora, racismo é racismo. Venha de quem vier, de onde vier e quando vier. Também aqui no FB, Anunciação Morena lembrou a definição sintética de Wilson Gomes no twitter: ‘Para haver racismo é suficiente: 1) acreditar em raças humanas; 2) acreditar que a(s) outra(s) ‘raça (s)’ é inferior; 3) tratar indivíduos com hostilidade, com base no fato de que a sua ‘raça’ é inferior. Ponto. O resto é dogma’.
‘Racismo estrutural’ é uma falácia. Uma abstração confortável – mas, sobretudo, uma jogada muito esperta, malandríssima. Essencialmente desonesta. Quem leva isso a sério não deve ser levado a sério, ainda mais fazendo pose de teórico, cientista, salvador da ‘raça’ ou coisa que o valha.
Bem, mas agora vou tirar um tempo para o curso on line que começo a dar no próximo sábado pela manhã…”
Abaixo a censura, viva o debate. Quem quiser combater a visão de Antonio Risério, que recorra a argumentos, não ao cancelamento. O antropólogo não pode ser responsabilizado pelas distorções que fazem do seu pensamento e punido por isso. Ninguém pode. Um jornal só perde credibilidade quando cala bocas de quem tem realmente algo a dizer.
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