Não há eleitores no Brasil
O Antagonista

Não há eleitores no Brasil

avatar
Miguel Sanches Neto
4 minutos de leitura 16.04.2021 15:24 comentários
Opinião

Não há eleitores no Brasil

“Este é tempo de partido, / tempo de homens partidos”, diz Carlos Drummond de Andrade, no poema Nosso tempo, do livro A Rosa do Povo (1945), seu volume mais político. O que valia em 1945 vale ainda hoje, desafortunadamente. Vivemos um tempo de partidos, de homens e mulheres partidas. A poesia política de então nos ajuda a entender o que somos em “nosso tempo”...

avatar
Miguel Sanches Neto
4 minutos de leitura 16.04.2021 15:24 comentários 0
Não há eleitores no Brasil
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

“Este é tempo de partido, / tempo de homens partidos”, diz Carlos Drummond de Andrade, no poema Nosso tempo, do livro A Rosa do Povo (1945), seu volume mais político. O que valia em 1945 vale ainda hoje, desafortunadamente. Vivemos um tempo de partidos, de homens e mulheres partidas. A poesia política de então nos ajuda a entender o que somos em “nosso tempo”.

Para compreender o Brasil político, é preciso analisar duas de nossas manifestações culturais mais emblemáticas. O futebol e o carnaval. Somos, em boa medida, decorrências tragicômicas destes elementos identitários.

No futebol, a maioria de nós tem um time. Criticamos erros dele, mas o colocamos como a instituição mais sagrada da pátria amada Brasil. A cada jogo, entre alegrias e tristezas, estamos ao lado de nossa equipe. Gritamos, xingamos, vibramos, soltamos rojões, usamos a camisa de nosso time, se ele for vencedor, e odiamos todos os demais, principalmente um em especial, eleito como responsável por todos os insucessos do nosso. Daí surgem as grandes rivalidades. A da moda: Flamengo versus Palmeira no campeonato nacional. Mas poderia ser Grêmio versus Internacional, no Rio Grande do Sul; Flamengo versus Fluminense, no Rio etc.

Perguntei a um amigo por qual razão ia ao estádio se não torcia para um time específico.

“Para xingar o juiz”, ele me respondeu.

Ou seja, pelo futebol, exorcizamos nossas frustrações mais recônditas. O importante é ter alguém para chamar de inimigo. Isso nos alivia de nossas tensões e nos deixa amortecidos em relação aos nossos próprios erros.

Chegamos então ao primeiro princípio do que é ser brasileiro.

É preciso torcer para algum time e odiar outros, ou no mínimo xingar os juízes.

Nossa outra instituição é o Carnaval. Travestir-se, criar enredos, mitificar uma lenda qualquer, enfim, ter uma forma de epifania que nos tire de nosso cotidiano anódino é uma maneira de manter a crença na vida. Somos um país carnavalesco, que transforma sofrimento em festa, em celebração da existência – e isso tem seu lado curativo. Mas também tem seu lado negativo por nos afastar de qualquer compromisso sério, afetando nossa postura nas horas mais graves. No poema Cabo Machado, de Mário de Andrade, de O Losango Cáqui (1926), esta contaminação carnavalesca atinge até a caserna: “Cabo Machado marchando / é muito pouco marcial. / Cabo Machado é dançarino, sincopado, / marcha vem-cá-mulata”. Esta sensualidade é definida pelo poeta como “bandeira nacional”.

Vamos então para o segundo princípio de nossa condição.

Transformamos tudo em festividade.

O leitor deve estar se perguntando o que isso tudo tem a ver com o título deste artigo.

Presos a estas duas marcas de nossa identidade, não discutimos política, não avaliamos projetos de país, não ouvimos especialistas, desperdiçamos nossas melhores mentes. Apenas torcemos para o time A ou para o time B e colocamos toda a nossa energia neste esforço e toda nossa crença para fazer com que ele seja o vencedor do jogo. Há, é claro, os isentões que se contentam em ofender a mãe do juiz, o que não deixa de ser uma forma de tomar partido.

Não existem, portanto, eleições no Brasil, essa alegre ficção democrática. Existe torcida organizada, para este ou aquele partido. E quando saímos às ruas, nos protestos, que são duros em outras democracias, aqui acabamos em manifestações dançarinas, sincopadas, com blocos alegres, fantasiados, como se desfilando. Quais as consequências práticas de nossas manifestações carnavalescas diante de situações gravíssimas?

Estas performances pouco efeito produzem como mudança política e servem mais pela plasticidade jornalística que propiciam. E as eleições, longe de serem atos conscientes de escolha de propostas exequíveis de gestão, são manifestações de torcidas organizadas em prol de nosso time, de nossa escola de samba, de nosso partido.

Miguel Sanches neto é escritor, autor, entre outros, do volume de crônicas Herdando uma Biblioteca (Ateliê Editorial, 2020).

  • Mais lidas
  • Mais comentadas
  • Últimas notícias
1

Uma má notícia da presidente da Petrobras para Lula

Visualizar notícia
2

Arthur Lira não quer prêmio de consolação

Visualizar notícia
3

Carros Lada, da era soviética, usados para invadir posições ucranianas

Visualizar notícia
4

Gleisi no aquecimento para 1ª reunião do Copom sob Galípolo

Visualizar notícia
5

Michelle e Eduardo Bolsonaro fora do inquérito da trama golpista

Visualizar notícia
6

“Não deixarei de lutar pelo que acredito”, diz Amanda Vettorazzo após ameaças

Visualizar notícia
7

Pontes desafia senadores a votarem alinhados a discursos nas redes

Visualizar notícia
8

Van Hattem sobre eleição na Câmara: “Impeachment de Lula é a 1ª pauta”

Visualizar notícia
9

Governo Lula mereceu perder popularidade

Visualizar notícia
10

Blackface: Fernanda Torres se desculpa após polêmica woke

Visualizar notícia
1

Arthur Lira não quer prêmio de consolação

Visualizar notícia
2

"Não deixarei de lutar pelo que acredito", diz Amanda Vettorazzo após ameaças

Visualizar notícia
3

Gleisi no aquecimento para 1ª reunião do Copom sob Galípolo

Visualizar notícia
4

Van Hattem sobre eleição na Câmara: "Impeachment de Lula é a 1ª pauta"

Visualizar notícia
5

Ministros de Lula impulsionam anúncios para redutos eleitorais

Visualizar notícia
6

Crusoé: "Vêm livres", diz Petro ao lado de colombianos deportados

Visualizar notícia
7

Governo Lula quer discutir deportações com Trump

Visualizar notícia
8

Recuo de Petro expõe fragilidade colombiana, diz jornal

Visualizar notícia
9

Haddad promete a empresários não taxar fundos imobiliários

Visualizar notícia
10

DeepSeek abala mercado e Nvidia perde US$ 600 bilhões em um dia

Visualizar notícia
1

Pontes peita Bolsonaro e faz desafio a senadores

Visualizar notícia
2

Haddad promete a empresários não taxar fundos imobiliários

Visualizar notícia
3

Famílias de presos políticos por ditadura de Maduro denunciam tortura

Visualizar notícia
4

Líder pede ao STF afastamento do ministro da Educação

Visualizar notícia
5

Governo Lula quer discutir deportações com Trump

Visualizar notícia
6

Mais de 375 mil palestinos retornaram a Gaza, diz ONU

Visualizar notícia
7

Ministra Gleisi?

Visualizar notícia
8

Comissão de Ética arquiva processo sobre ex-presidente da Caixa

Visualizar notícia
9

Governo de SC gasta R$ 724 mil em equipamentos de contra-espionagem sem licitação

Visualizar notícia
10

Papo Antagonista: Muito dinheiro em jogo

Visualizar notícia

Assine nossa newsletter Inscreva-se e receba o conteúdo do O Antagonista em primeira mão!

Tags relacionadas

artigo Carlos Drummond de Andrade carnaval eleições futebol Mário de Andrade Miguel Sanches Neto O Antagonista política
< Notícia Anterior

"Nem estava acompanhando o placar desse julgamento", diz Moro, sobre anulação das condenações de Lula

16.04.2021 00:00 4 minutos de leitura
Próxima notícia >

As pretensões políticas de Pazuello, antes do tombo

16.04.2021 00:00 4 minutos de leitura
avatar

Miguel Sanches Neto

Os comentários não representam a opinião do site; a responsabilidade pelo conteúdo postado é do autor da mensagem.

Comentários (0)

Torne-se um assinante para comentar

Notícias relacionadas

Michelle na posse do Trump x Janja e a faraona

Michelle na posse do Trump x Janja e a faraona

Madeleine Lacsko Visualizar notícia
Deputados querem impeachment de Lula por pedalada com Pé de Meia

Deputados querem impeachment de Lula por pedalada com Pé de Meia

Madeleine Lacsko Visualizar notícia
Se Elon Musk fosse mesmo contra os judeus, a esquerda &quot;free Palestine&quot; seria a favor dele?

Se Elon Musk fosse mesmo contra os judeus, a esquerda "free Palestine" seria a favor dele?

Madeleine Lacsko Visualizar notícia
O PT e a esquerda não têm nenhuma chance de ganhar o embate nas redes

O PT e a esquerda não têm nenhuma chance de ganhar o embate nas redes

Madeleine Lacsko Visualizar notícia
Icone casa

Seja nosso assinante

E tenha acesso exclusivo aos nossos conteúdos

Apoie o jornalismo independente. Assine O Antagonista e a Revista Crusoé.