O Brasil é um papagaio que matamos a cada dia
São assustadores os resultados da pesquisa sobre insegurança alimentar conduzida pela Universidade de Berlim, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais e a Universidade de Brasília. Insegurança alimentar é um eufemismo para fome. Há fome em vários graus, mas sempre será fome. De acordo com a pesquisa, em 6 de cada 10 domicílios brasileiros existe alguma dificuldade para a obtenção de alimentos. Esse problema ocorre principalmente no Nordeste, onde essa proporção sobre para 7 em cada 10 domicílios...
São assustadores os resultados da pesquisa sobre insegurança alimentar conduzida pela Universidade de Berlim, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais e a Universidade de Brasília. Insegurança alimentar é um eufemismo para fome. Há fome em vários graus, mas sempre será fome.
De acordo com a pesquisa, em 6 de cada 10 domicílios brasileiros existe alguma dificuldade para a obtenção de alimentos. Esse problema ocorre principalmente no Nordeste, onde essa proporção sobe para 7 em cada 10 domicílios.
Quando se disseca os números gerais, a insegurança é relatada como leve em 32% das casas, moderada em 13% e grave em 15%. Grave é fome total, aquele buraco que se abre no estômago e engole todos os pensamentos e sentimentos, mas mesmo na moderada ou leve é um fantasma que deve atormentar o tempo inteiro.
Os brasileiros também estão comendo menos e pior. Houve queda superior a 40% no consumo de carnes e frutas e de 37% no consumos de verduras e legumes. A pesquisa mostra ainda que em 63% dos domicílios o auxílio emergencial serviu para comprar comida. Comida da mais básica, que enche barriga, mas não alma.
Renata Motta, professora de sociologia na Universidade Livre de Berlim e integrante da equipe que realizou a pesquisa, resume: “O aumento ainda maior da insegurança alimentar, bem como a redução drástica no consumo regular de alimentos saudáveis, eram esperados por múltiplos fatores, de ordem econômica e política. Os efeitos da desaceleração da economia desde 2015 não foram, como quando houve a queda do PIB com a crise financeira mundial de 2008, mediados por políticas sociais anticíclicas de garantia da renda. A pandemia veio neste caldo e tornou ainda mais visíveis as consequências das escolhas políticas recentes do País.”
Sem dúvida, os amortecedores sociais são essenciais, em especial num momento de emergência como este, mas o fato incontornável é que, apesar de todas as mistificações em torno de governantes e partidos políticos, ainda há fome no Brasil e a sua erradicação para sempre nunca foi prioridade oficial. Se ela diminuiu ao longo dos últimos 100 anos, foi por obra quase que exclusiva dos milhões de cidadãos desesperados que saíram das suas regiões para buscar oportunidades em outras e das iniciativas beneméritas de caráter privado.
Governo erradica fome não apenas com políticas assistenciais. No mais das vezes, aliás, ela é apenas moeda de troca eleitoreira que tende a perpetuar a emergência. Governo erradica fome promovendo educação de boa qualidade, formação profissional e estimulando a criação de empresas e, consequentemente, de empregos. No Brasil, não se faz nada disso. Os governos servem a si próprios, aos amigos e aos amigos dos amigos. Quando tivemos ambientes econômicos favoráveis para a virada histórica, eles se dedicaram a endividar gente pobre, por meio de crédito farto e caro, além de iludir os seus rebentos com o ingresso em faculdades de meia tigela. A tigela nenhuma, no Brasil, é exatamente isto: fruto de governos de meia tigela.
A pandemia só tornou a nossa tragédia preexistente ainda mais visível, como disse a professa da Universidade Livre de Berlim. É vergonhoso e revoltante que ainda haja brasileiros com fome, muitos dos quais vivendo como a família de retirantes nordestinos de Vidas Secas, o clássico de Graciliano Ramos, Só que, agora, não há mais lugar do qual retirar-se.
No romance publicado em 1938, Graciliano Ramos descreveu a fome numa cena que julgo das mais pungentes que já li: “Ainda na véspera eram seis viventes, contando com o papagaio. Coitado, morrera na areia do rio, onde haviam descansado, à beira de uma poça: a fome apertara demais os retirantes e por ali não existia sinal de comida. (A cachorra) Baleia jantara os pés, a cabeça, os ossos do amigo, e não guardara lembrança disto. Agora, enquanto parava, dirigia as pupilas brilhantes aos objetos familiares, estranhava não ver sobre o baú de folha a gaiola pequena onde a ave se equilibrava mal. Fabiano também às vezes sentia falta dela, mas logo a recordação chegava. Tinha andado a procurar raízes, à toa: o resto de farinha acabara, não se ouvia um berro de rês perdida na catinga. Sinha Vitória, queimando o assento no chão, as mãos cruzadas segurando os joelhos ossudos, pensava em acontecimentos antigos que não se relacionavam: festas de casamento, vaquejadas, novenas, tudo numa confusão. Despertara-o um grito áspero, vira de perto a realidade e o papagaio, que andava furioso, com os pés apatetados, numa atitude ridícula. Resolvera de supetão aproveitá-lo como alimento e justificara-se declarando a si mesma que ele era mudo e inútil. Não podia deixar de ser mudo. Ordinariamente a família falava pouco.”
Graciliano Ramos foi pungente e exato há 83 anos. O Brasil continua a ser um papagaio que matamos a cada dia, para tentar saciar uma fome infinita.
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