O que não é dito sobre Putin no caso da Ucrânia
Ontem, a Europa foi dormir com a notícia de que Vladimir Putin (foto) e Joe Biden aceitaram a ideia de encontrar-se para conversar sobre a situação nas fronteiras da Rússia e Belarus com a Ucrânia, nas quais Moscou concentrou de 150 mil a 190 mil soldados e vem fazendo exercícios militares com armamentos pesados. O encontro foi proposto por Emmanuel Macron, que está empenhado na interlocução com Vladimir Putin, a fim de evitar a invasão do território ucraniano pelos russos...
Ontem, a Europa foi dormir com a notícia de que Vladimir Putin (foto) e Joe Biden aceitaram a ideia de encontrar-se para conversar sobre a situação nas fronteiras da Rússia e Belarus com a Ucrânia, nas quais Moscou concentrou de 150 mil a 190 mil soldados e vem fazendo exercícios militares com armamentos pesados. O encontro foi proposto por Emmanuel Macron, que está empenhado na interlocução com Vladimir Putin, a fim de evitar a invasão do território ucraniano pelos russos. A situação vem se degradando rapidamente, em especial na região separatista de Donbas, no leste da Ucrânia, onde o exército do país e rebeldes patrocinados pela Rússia já trocam chumbo pesado e a turba a mando de Moscou ordenou a evacuação de civis para território russo e a mobilização de homens com idade para combater. Desde a invasão da Crimeia, em 2014, desconfia-se — e esse verbo é apenas um preciosismo jornalítisco — de que Vladimir Putin mantém tropas clandestinas na região que deseja anexar.
De acordo com o anunciado pelo governo francês, o secretário de estado americano, Anthony Blinken, e o chefe da diplomacia russa, Sergei Lavrov, iriam se reunir na quinta-feira, para preparar o encontro dos presidentes americano e russo, que se dará sob a égide da Organização para a Segurança e Cooperação da Europa. A única condição americana para o que o encontro se desse era que a Rússia não invadisse a Ucrânia.
Hoje de manhã, contudo, Vladimir Putin comunicou que julgava “prematuro” o seu encontro com Joe Biden. Ou seja, nada está garantido. Durante a noite, tiros continuaram a ser trocados em Donbas, com a Rússia insistindo que a Ucrânia é a provocadora.
O quadro é muito mais grave do que se imagina. Em primeiro lugar, é francamente ridículo acreditar que Moscou concentrou tamanha quantidade de homens nas fronteiras com a Ucrânia, que está longe de ser uma potência bélica, apenas para realizar simples exercícios militares, como vem repetindo o Kremlin — inclusive com a permanência por tempo indeterminado das suas tropas recém-deslocadas para Belarus, a pretexto de reprimir uma revolta contra o presidente local, Aleksandr Lukashenko, outro tirano produzido pelos regimes ex-comunistas da Europa Oriental. Não existem exercícios militares dessa envergadura, e certamente não foi sem primeiras intenções que Vladimir Putin, acompanhado de Aleksander Lukashenko, testou há dois dias mísseis hipersônicos, capazes de carregar ogivas nucleares e que podem ser usados como armas convencionais contra a Ucrânia.
As provocações em Donbas, a concentração de tropas, o teste com mísseis, as mentiras de Moscou sobre a sua verdadeira e verificável intenção de invadir a Ucrânia, a menos que o país vizinho seja proibido de ingressar na Otan, a aliança militar liderada pelos Estados Unidos — tudo isso constitui a gravidade evidente. Mas há um segundo ponto que não está sendo dito e que torna tudo bem mais preocupante. Ele está descrito no livro intitulado A Rússia de Putin, da jornalista Anna Politkovskaia, que revelou os abusos cometidos pelo presidente russo na guerra da Chechênia, entre 1994 e 1996, e mostrou como o Ocidente havia contribuído para fortalecer o autoritarismo de Vladimir Putin, porque o via como aliado indispensável contra a organização terrorista Al-Qaeda, de Osama bin Laden, autora dos ataques de 11 de setembro em Nova York e Washington. No seu livro, Anna Politkovskaia, que morreu assassinada em Moscou, em 2006, no dia em que o presidente russo completou 54 anos (o que faz pensar num “presente de aniversário” a um tirano que gosta de matar os seus adversários) conta como Vladimir Putin, um ex-oficial do exército e ex-agente da KGB, a polícia secreta da União Soviética, não tinha total controle sobre as forças armadas russas, das quais dependia para manter-se no poder, em relação de mão dupla. A Rússia de Putin data de 2004, mas nada leva a crer que alguma coisa tenha mudado nessa interdependência, na última década e meia. Pelo contrário. De lá para cá, graças ao apoio militar, Vladimir Putin fortaleceu ainda mais o seu controle sobre a Rússia, e os militares viram o seu orçamento aumentar para 65 bilhões de dólares por ano, em 2020, o que fez o país voltar a figurar entre os cinco do mundo que mais gastam com armas. Além disso, o exército, a marinha e aeronáutica puderam testar as suas competências num teatro de guerra real, durante a invasão da Crimeia, em 2014.
Quando Vladimir Putin expressa a sua nostalgia dos tempos do império soviético e fala em restabelecer o que julga ser a esfera de influência russa na Europa, o que inclui a Ucrânia e quase todos os países que compunham a Cortina de Ferro, com a exceção da então Alemanha Oriental, está claro que o presidente russo não fala somente por ele, mas por todo o aparato militar que o sustenta. É isto que não está sendo dito: que, para a Rússia fazer qualquer acordo com o Ocidente sobre a Ucrânia, não basta que Vladimir Putin concorde. É preciso que as forças armadas da Rússia também aceitem. E são elas que estão com o dedo no gatilho.
Vladimir Putin não é refém dos seus generais, mas cresceu sob a sombra deles, numa relação de mutualismo. O poder do presidente russo foi constituído de tal forma que ele não pode bancar o Josef Stalin e promover expurgos ocasionalmente, para evitar ser confrontado. O Ocidente só tem duas formas de tentar impedir a invasão da Ucrânia: ou mostra os dentes e músculos, o que não está disposto a fazer, ou dá um bom naco de carne ucraniana para Vladimir Putin alimentar a si próprio e ao aparato militar que não quer saber de acordos nos quais não levará nada. O presidente ucraniano Volodymir Zelensky sempre soube que apenas a primeira opção poderia manter a a soberania e a integridade territorial do seu país, apesar do discurso cuidadoso que vinha mantendo. Mas, como o quadro está cada vez pior, ele explicitou o seu ponto de vista na reunião com outros líderes europeus e a vice-presidente americana Kamala Harris, em Munique, no sábado. Volodymir Zelensky deixou claro que a ameaça de sanções econômicas não será suficiente para proteger a pobre Ucrânia, longe de Deus e perto demais da Rússia.
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